Os eliminados na redação do Enem não são quem você imagina

Desde 2013, a prova desclassifica pelo critério de “respeito aos direitos humanos”; medida afeta mais os já desfavorecidos

Marcelo Soares
Numeralha

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Há semanas, no auge da polêmica sobre a eliminação de candidatos na redação do Enem pelo critério de respeito aos direitos humanos, houve um assalto com tiros aqui perto. Um segurança ferido, um assaltante morto.

Fui ouvir a caixa da padaria, que sempre sabe tudo o que ocorre no bairro, e fiquei um pouco chocado. Ela é uma das pessoas mais gentis que conheço, mas seu discurso sobre a morte do criminoso era algo que certamente não passaria no crivo do Enem. Pelo pouco que conheço dela — jovem, mora na periferia, deixou os estudos cedo etc — , dependendo do tema a redação do Enem poderia ser mais uma oportunidade perdida em sua vida.

Fiquei com uma pulga atrás da orelha. Sim, sou plenamente a favor do respeito aos direitos humanos. Mas, quando penso em desrespeito aos direitos humanos em redação do Enem, sempre pensei em moleques autoritários, não na caixa da padaria. Quantas pessoas como ela estão entre os eliminados?

Demorei para conseguir essa resposta. Precisei subir os microdados do Enem para a nuvem do Google, porque meu computador não dá conta de analisar tantos milhões de linhas. (Agradeço ao Marco Túlio, do Google News Lab, pela dica de poucos segundos que destravou meu desempenho aqui.)

O último ano disponível nos microdados do Enem é 2015. Aquele foi o ano do tema mais polêmico na redação do Enem: violência contra a mulher. Foi o ano em que Simone de Beauvoir foi citada num enunciado, na prova de ciências sociais. Obviamente, isso tudo incendiou as redes sociais. Faz parte de todo o contexto que levou à perseguição recente aos pelados dos museus. 2017 é filho de 2015 e neto de 2013.

Se o tema era violência contra a mulher, é razoável supor que os eliminados tenham sido moleques neomachistas, certo?

Pois é. Não.

Dos 9.935 que tiraram zero na redação do Enem por terem caído no critério 5 (desrespeito aos direitos humanos), 60% eram meninas. Nada menos que seis a cada dez.

É bem possível que elas tenham escrito que homem que bate em mulher tem que sofrer coisas que não podem constar do Código Penal. Não sei. Os microdados não incluem o texto escrito pelos candidatos.

Vamos ver outros aspectos socioeconômicos desses candidatos eliminados:

Mais de 8 a cada 10 estudaram em escolas públicas no ensino fundamental. Se incluirmos quem fez a maior parte do ensino fundamental em escola pública, temos aí quase 9 a cada 10 alunos.

Mais da metade trabalhou pelo menos em parte do tempo, como a moça da padaria.

Dentre os que trabalham, 57% trabalham pelo menos seis horas por dia. E começaram cedo: metade começou a trabalhar até os 18 anos.

Isso se explica em parte pela renda familiar: 62% declararam que sua família inteira ganha até R$ 1.182 mensais. Nesses lares, para poder pagar as contas, todo mundo começa a trabalhar cedo.

Os pais desses alunos eliminados geralmente têm profissões mais simples e mal remuneradas.

As combinações mais comuns de profissões dos pais de alunos eliminados são: pai e mãe lavradores, pai e mãe diaristas/porteiros e pai pedreiro e mãe diarista. (Não sei a profissão exata, apenas cruzei os grupos de profissões.)

Obviamente, essas profissões também implicam baixo nível de instrução. Desses alunos eliminados por desrespeito aos direitos humanos na redação do Enem, 61% dos pais e 57% das mães têm menos escolaridade do que os filhos — ou seja, não concluíram o ensino médio.

Por mais que eu julgue que o respeito aos direitos humanos seja fundamental, talvez a sofisticação dos temas escolhidos (sem dúvida relevantes) acabe tirando oportunidades de algumas pessoas de famílias mais desfavorecidas.

(Os temas sofisticados são um problema. Eu dificilmente saberia discorrer sobre educação de crianças com deficiência auditiva, tema deste ano. Imagine um adolescente de 17 anos que talvez sequer conheça um jovem com surdez.)

São relativamente poucos os estudantes eliminados na redação do Enem por desrespeito aos direitos humanos. Mais de cinco milhões não tiveram problemas, menos de dez mil tiveram. Cabe lembrar que muitos com perfil semelhante ao dos eliminados foram avaliados com sucesso.

Ainda assim, há um corte sociodemográfico muito forte nos eliminados. Veja a diferença de rendimento familiar entre os eliminados e os avaliados:

E veja a diferença da profissão da mãe entre os eliminados e os avaliados:

Vamos ver a escolaridade do pai?

Não li os textos eliminados, mas provavelmente seria eliminada uma menina que tenha escrito que homem que agride mulher tem mais é que morrer ou coisa pior. A lei não permite isso.

Pelo perfil dessas estudantes, não é baixa a chance de terem visto cenas de violência contra mulheres. Talvez até mesmo em casa. Talvez algumas até tenham sido vítimas de agressão.

Pela idade dos estudantes, não é difícil que essas meninas soltassem sua sinceridade indignada no papel.

Por terem estudado em escolas públicas desde a infância, dificilmente foram “treinadas” para escrever uma redação do Enem que atendesse a todos os critérios.

(Uma amiga muito querida leciona redação em uma escola particular, lê com carinho os textos dos alunos e conversa com eles para refletirem a respeito. Numa escola pública isso é raro. Estudei em várias no século passado.)

Duvido que esses jovens eliminados no critério dos direitos humanos sejam pessoas más. Apenas reproduzem um senso comum violento no qual estão imersos. Talvez dentro de uma universidade pudessem ter discussões e leituras que refinassem sua visão de mundo.

Mas, por terem perdido tantas oportunidades na vida, esses ali perderam mais uma. Muitos de perfil semelhante não perderam, repito. Mas esses sim.

Podia ser a caixa da padaria.

NOTA: Em um dos comentários, um leitor pergunta se este tipo de análise não ajuda a estigmatizar ainda mais a questão dos direitos humanos, esse tema tão malcompreendido e tão xingado pelo senso comum violento neste ano doido. Longe de mim tal intenção e ainda mais longe de mim tal condão. A ideia é buscar conhecimento sobre um problema que existe.

Acredito, porém, que criar leprosários de opiniões indigestas, excluindo da participação em sociedade aqueles que pensam de maneira que eu sei por que considero inaceitável, não ajuda a resolver o problema. Pelo contrário. O que me parece é que as pessoas têm tal tipo de opinião porque estão imersas num determinado senso comum. Entre tantas coisas que lhes faltam, falta-lhes informação e formação.

Excluí-las da possibilidade de obtê-las apenas mantém o problema longe dos olhos e ouvidos, perpetuando-o. Isso em minha opinião, claro. Mas não me pergunte qual a melhor maneira de fazer isso, porque eu não sei.

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