Distritão, o retorno
Jairo Nicolau
∗
19 de julho de 2017
Resumo
Em 2015, a Câmara dos Deputados votou uma emenda constitucional que
substituía a representação proporcional por um sistema eleitoral de nome
curioso: distritão. A proposta não conseguiu o número de votos necessários, e
parecia relegada ao esquecimento. Mas nesse primeiro semestre de 2017, um
nova onda ressuscitou a proposta do distritão. A ideia é que ele seja aprovado
para entrar em vigor já nas eleições de 2018. Neste texto discuto algumas
das premissas que têm orientado os deputados em sua defesa do novo sistema
eleitoral, e apresento algumas "falhas"graves do distritão, particularmente, seu
potencial para desperdiçar os votos dos eleitores e a ausência de uma solução
razoável para a suplência dos parlamentares.
Palavras-chaves: distritão; sistemas eleitorais; reforma política.
———————————————
No dia 26 de maio de 2015, a Câmara dos Deputados votou o projeto de
adoção do distritão para a eleição de deputados federais, deputados estaduais e
vereadores. A proposta foi vitoriosa (267 contra 210), mas não obteve os 308 votos
necessários para ser aprovada, já que se tratava de uma emenda constitucional.
Com a derrota do distritão e de outros modelos de voto (lista fechada e distritalmisto), todos votados na mesma noite de maio, eu imaginava que a discussão sobre
a adoção de um novo sistema eleitoral nem tão cedo seria avaliada pelo Congresso.
Mas ao longo das últimas semanas do primeiro semestre de 2017 muitas lideranças
políticas voltaram a defender o distritão. A sugestão é que o novo sistema eleitoral
já entre em vigor nas eleições de 2018.
Nos debates que antecederam a votação de 2015, dois argumentos apareceram
com mais frequência entre os advogados do distritão. O primeiro é a simplicidade.
Professor de ciência política da UFRJ, autor de: Representantes de quem? os (des)caminhos
do seu voto das urnas à Câmara dos Deputados, Zahar, 2017.
∗
1
De fato, esta é uma virtude (ao meu entender, a única) desse sistema eleitoral. Ele é
simples de entender: numa eleição para a deputado federal em um dado estado, são
eleitos os candidatos que individualmente têm mais votos.
O segundo argumento é que ele tornaria a organização da lista de candidatos
mais simples. É comum ouvir deputados com longa experiência parlamentar dizerem
que é uma "dor de cabeça"organizar a nominata (lista de nomes que concorrerão pelo
partido), negociar as eventuais coligações com outras legendas e distribuir o dinheiro
arrecadado e o tempo do horário eleitoral gratuito entre os candidatos. No distritão,
eles não teriam que lidar com essas chateações. Ao partido caberia apenas escolher
alguns nomes; depois disso, cada um tentaria a sorte, dependendo exclusivamente de
seus esforços.
A expectativa de quem defende o distritão é que sob sua vigência o número
de candidatos seja menor, gerando uma maior concentração da disputa entre os
nomes tradicionais. O que, consequentemente, tornaria as campanhas mais baratas.
O distritão forçaria um cenário de seleção natural, onde os mais aptos (claro, os
políticos com mandato) teriam uma probabilidade muito maior de se elegerem.
Pelo que li nos jornais, podemos acrescentar um novo argumento em defesa
dos distritão, que pode ser resumido na seguinte frase: “já que os partidos estão
em baixa no Brasil, o melhor é optar por um sistema que dê mais espaço para os
candidatos individualmente”. Numa situação em que os partidos conhecem a pior
avaliação dos eleitores desde 1985, o ideal seria adotar um sistema eleitoral que
ofereça o maior espaço possível para as candidaturas individuais.
1 Quem seria eleito no distritão?
É lugar-comum ouvir que os sistemas eleitorais das democracias tradicionais
não são alterados com frequência, em decorrência de uma espécie de força inercial:
os deputados preferem as regras pelas quais foram eleitos, do que as incertezas de
novas regras. Fazendo uma adaptação do adágio americano: convocar os deputados
para discutir um novo sistema eleitoral é como convidar o peru para organizar a ceia
de natal.
A nova onda em defesa do distritão, porém, revela um enigma: por que os
atuais deputados brasileiros acreditam que terão mais chances de serem reeleitos no
distritão, do que no modelo proporcional de lista aberta em vigor?
O enigma fica ainda maior se compararmos os dois sistema eleitorais. A rigor,
o distritão é a lista aberta sem quociente eleitoral. Ou dito de outra maneira, o atual
sistema eleitoral funciona como um distritão para cada partido e/ou coligação.
Atualmente, antes das eleições, os deputados mais experientes e os dirigentes
dos partidos têm uma estimativa razoavelmente acurada de quantos deputados seu
partido tem chances de eleger. Numa conversa com estas figuras é comum ouvir:
o PMDB vai eleger entre cinco e sete deputados; o DEM deve conquistar duas ou
três cadeiras. Desse modo, os concorrentes de um determinada legenda têm uma
estimativa de que os, digamos, 30 candidatos inscritos estão, na realidade, disputando
as cinco ou seis cadeiras que o partido elegerá.
2
Por que preferir um sistema em que os políticos têm um razoável controle
da competição entre os nomes da lista, por um sistema com disputa acirrada entre
centenas de concorrentes de todos os partidos?
Creio que muitos políticos podem ter sido enganados pela ilusão da simulação
eleitoral. É muito comum que os estudiosos façam simulações com dados de eleições
passadas utilizando sistemas eleitorais alternativos. A ideia é observar como ficaria a
distribuição de cadeiras, caso um outro sistema eleitoral estivesse em vigor naquela
eleição. A ilusão da simulação eleitoral é a crença de que este resultado se verificará
em eleições futuras.
A Tabela 1 mostra uma simulação com resultados do pleito de 2014, caso
o distritão estivesse em vigor. Nas colunas é possível comparar as bancadas dos
partidos nas eleições passadas, com as bancadas eleitas com o novo sistema eleitoral.
Apenas 46 dos atuais deputados (9% do total) não se elegeriam. Embora existam
algumas mudanças no número de cadeiras de alguns partidos, o quadro geral não é
de mudanças expressivas.
O argumento apresentado por alguns deputados é simples: se eu seria eleito
tanto no sistema atual como no distritão, por que não adotar logo o novo sistema?
Nele continuo pedindo votos para mim, não me aborreço com as coligações e a
organização de nominatas e, melhor, num período em que partidos andam em baixa,
posso me dar ao luxo de “fingir” que não pertenço a um deles.
O problema é que esta simulação foi feita com votos do passado, sob o modelo
de lista aberta em que era permitido aos partidos se coligarem, e as campanhas eram
amplamente financiadas pelas empresas.
Na vigência do distritão, e sem o financiamento empresarial das campanhas,
teríamos um cenário completamente diferente. É razoável imaginar que o novo sistema,
estimule, por exemplo, candidaturas de lideranças religiosas e de organizações da
sociedade civil e personalidades do mundo esportivo e cultural. Como o sucesso para
ser eleito depende exclusivamente da captação de votos pelo candidato, por que
não tentar a sorte? Ou seja, ao contrário do que muitos deputados sustentam, a
concorrência, poderá aumentar com o distritão.
2 Votos desperdiçados
O sistema proporcional em vigor no Brasil tem uma diferença fundamental
em relação ao distritão: os votos dos candidatos de um mesmo partido ou coligação
são somados antes que as cadeiras sejam distribuídas.
Ultrapassar o quociente eleitoral exige, quase sempre, que os votos de muitos
candidatos de uma mesma legenda sejam agregados. Nas eleições para deputado
federal no Rio de Janeiro em 2014, por exemplo, o quociente eleitoral foi de 166.814
votos - ou seja um partido teve que receber pelo menos esta votação para assegurar
a eleição de um dos seus candidatos. O deputado Rodrigo Maia (DEM) recebeu
apenas 53.167 votos e, portanto, só se elegeu por conta dos votos “transferidos” por
outros colegas de sua chapa.
3
Tabela 1 – Total de deputados eleitos em 2014 e caso o distritão estivesse em vigor
Partido
Cadeiras e nas eleições de 2014
Cadeiras com o distritão
Diferença
PT
PMDB
PSDB
PP
PSD
PR
PSB
PTB
DEM
PRB
PDT
SD
PSC
PROS
PC do B
PPS
PV
PHS
PSOL
PTN
PMN
PRP
PEN
PSDC
PT do B
PTC
PRTB
PSL
Total
68
66
54
38
36
34
34
25
21
21
19
15
13
11
10
10
8
5
5
4
3
3
2
2
2
2
1
1
513
71
71
54
38
42
32
34
24
23
19
21
12
15
10
12
10
5
2
6
3
2
3
1
0
1
0
1
1
513
3
5
0
0
6
-2
0
-1
2
-2
2
-3
2
-1
2
0
-3
-3
1
-1
-1
0
-1
-2
-1
-2
0
0
-
Assim, mesmo que o eleitor não eleja o candidato em quem votou, seu voto é
aproveitado para eleger outro nome do partido. O eleitor diz que "perdeu o voto”
quando não elege seu candidato porque não conhece as regras de apuração dos votos
utilizadas no Brasil.
No distritão isso não aconteceria. Votos dados em nomes que não se elegem
simplesmente são desperdiçados. A Tabela 2 apresenta o volume de votos desperdiçados em cada estado, caso o distritão tivesse em vigor em 2014. A primeira coluna
mostra o total de votos obtidos pelos 513 deputados eleitos, e a segunda o total de
votos que seriam desperdiçados; a última coluna apresenta o percentual de votos
desperdiçados em cada estado. A simulação revela que 30,6 milhões (34% dos eleitores
que votaram em algum nome) teriam seus votos não contabilizados na distribuição
de votos para deputado federal em 2014.
4
Tabela 2 – Votos obtidos pelos candidatos eleitos e não eleitos, caso o distritão
estivesse em vigor. Eleições de 2014.
Estado
Votos dos eleitos Votos dos não eleitos Total de votos
AC
AL
AM
AP
BA
CE
DF
ES
GO
MA
MG
MS
MT
PA
PB
PE
PI
PR
RJ
RN
RO
RR
RS
SC
SE
SP
TO
Brasil
185.643
855.817
1.034.093
140.599
4.322.084
2.988.773
786.047
859.704
2.001.707
1.578.423
6.569.217
720.707
778.831
2.107.914
1.207.708
3.127.931
1.044.090
3.624.421
4.325.885
999.574
350.103
129.319
3.701.705
2.197.142
625.866
12.524.397
420.377
59.208.077
182.689
427.326
528.067
228.277
1.760.731
1.016.271
578.195
867.034
827.853
1.328.135
2.760.272
454.282
563.286
1.391.960
567.884
1.007.528
546.190
1.691.603
2.884.543
453.749
390.821
105.082
1.802.716
945.618
348.460
6.701.359
250.928
30.610.859
368.332
1.283.143
1.562.160
368.876
6.082.815
4.005.044
1.364.242
1.726.738
2.829.560
2.906.558
9.329.489
1.174.989
1.342.117
3.499.874
1.775.592
4.135.459
1.590.280
5.316.024
7.210.428
1.453.323
740.924
234.401
5.504.421
3.142.760
974.326
19.225.756
671.305
89.818.936
5
% de votos
desperdiçados
49,6
33,3
33,8
61,9
28,9
25,4
42,4
50,2
29,3
45,7
29,6
38,7
42,0
39,8
32,0
24,4
34,3
31,8
40,0
31,2
52,7
44,8
32,8
30,1
35,8
34,9
37,4
34,1
3 Quem realmente disputa uma cadeira?
O grande número de candidatos e partidos que ocorrem nas eleições brasileiras
dão uma falsa ideia de que existe uma disputa entre todos os concorrentes pelas vagas
em disputa. Na prática, em todos os estados, um número reduzido de candidatos
concentram tanto o dinheiro arrecadado durante a campanha, quanto os votos
obtidos.
A Figura 1 apresenta a distribuição da votação dos candidatos a deputado
federal nas eleições de 2014. As barras mostram o percentual de votos concentrados
pelos 70% menos votados, pelos 20% intermediários e pelos 10% mais votados.
No âmbito nacional, o total de votos dos 70% menos votados chega a apenas 5%,
enquanto os 10% mais votados concentram 75% de todos os votos.
Figura 1 – Concentração de votos nas eleições para deputado federal nas eleições de
2014. .
Os estados estão apresentados em ordem decrescente, segundo o índice de
gini - medida utilizada para medir a concentração em uma determinada população;
quanto mais alto é o valor, mais concentrada é a votação no estado. É interessante
observar que a maior concentração de votos acontece justamente nos três maiores
estados (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro). Em São Paulo, os 10% mais
votados concentraram 82% da votação, enquanto os 70% menos votados somaram
apenas 4% dos votos.
Portanto, a enorme dispersão partidária das eleições de 2014 escondeu um dado
6
pouco salientado pelos analistas. Longe de ser um mercado altamente pulverizado, o
mercado eleitoral é fortemente oligopolizado na disputa para deputado federal. Neste
quadro, soa estranho o argumento de que o distritão tem a virtude de concentrar
ainda mais o financiamento das campanhas e os votos.
4 Suplente de quem?
Um aspecto pouco discutido do distritão é a suplência dos deputados. Atualmente, quando um parlamentar deixa o seu mandato, ele é substituído pelo suplente
do seu partido/ou coligação. Por isso, é comum que que presidentes, governadores e
prefeitos nomeiem deputados e vereadores para cargos no Executivo, com o intuito
de que alguns suplentes possam assumir o mandato.
Caso o distritão seja adotado, essa prática não deverá ser utilizada com
tanta frequência, já que a posição política do suplente será totalmente aleatória
em relação ao titular. Um deputado federal conservador poderá, por exemplo, ser
nomeado ministro, e ser substituído por um suplente de esquerda. Outro parlamentar
se licenciaria para ver sua vaga ocupada por um tradicional adversário pertencente a
outro partido.
Considerações finais
Um das características do debate sobre reforma política no Brasil, que já
dura mais de duas décadas, é a busca de um sistema eleitoral que possa corrigir
alguns dos problemas da lista aberta.
De todos os modelos propostos, o distritão, é sem dúvida, o pior. É difícil
entender porque justamente ele tem conseguido atrair tantos apoiadores entre os
parlamentares. Nenhum dos argumentos apresentados recentemente em defesa do
distritão justifica tal escolha.
O mais curioso é que a opção pelo distritão é totalmente irracional da
perspectiva da única motivação que parece orientar os deputados: a sobrevivência
política. Qual é o sentido de abandonar um a competição entre os colegas da lista por
uma competição contra todos os candidatos do estado? Por que trocar um sistema
altamente oligopolizado por uma disputa em que será muito mais fácil para nomes
com liderança na sociedade entrarem na política? Por que perder o mecanismo de
ascensão na carreira garantido pela atual regra da suplência?
Na vida real pode ser que ocorra, mas, pelo menos no adágio, o peru prefere
não ir à ceia de natal.
7