Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Torres

Para prosperar na política, é preciso erradicar de si qualquer moralidade

Quando olhei para a fotografia de Anthony Garotinho sendo enfiado à força numa ambulância estampada na primeira página, jurei que era a charge do dia de Chico Caruso. Depois, assisti à ópera pela TV e cogitei tratar-se de encenação.

Garotinho surge na maca, parece conformado, mas, de repente, dá um pulo de prima-dona com a mão em riste e começa a se debater. A cena anterior à saída, dele chutando os policiais no quarto, corrobora a veracidade do desespero, mas não duvido que, mesmo abatido, o ex-governador não tenha pensado em tirar vantagem do instante trágico.

É impossível, na política, separar fingimento de honestidade.

O registro de Sérgio Cabral derreado, dando entrada na ala do presídio que ele próprio inaugurou, me fez pensar se, em algum lugar recôndito da consciência do (também) ex-governador do meu Estado, ele admite que, para cada Louboutin que sua mulher tão contente exibe num cancã entre amigas, algo de podre acontece na vida real.

Crédito: Marta Mello/- Ilustração para a coluna "Psicose", de Fernanda Torres (25/11)

Talvez não. Para prosperar no meio, é preciso se descolar da realidade e erradicar de si qualquer vestígio de moralidade. Geddel Vieira que o diga.

O pré-sal agravou o quadro psicótico, a indiferença do farinha muita, meu pirão primeiro. E não só no Rio.

Antes de o petróleo jorrar, as propinas foram calculadas, e pagas, com base nos ganhos futuros. Forraram-se os bolsos e alimentou-se a máquina partidária, na esperança de que sobraria para reformar um hospital aqui, outro acolá. O extrativismo entre nós é tão arraigado que ninguém acredita em gestão.

Na segunda-feira, quando fui trabalhar, ouvi da cabeleireira que seu namorado havia levado três tiros num assalto coletivo a um posto de gasolina, perpetrado por 40 motoqueiros encapuzados. Duas maquiadoras ficaram ilhadas no meio do tiroteio da Cidade de Deus, onde sete jovens foram assassinados e quatro policiais mortos na queda de um helicóptero; e o figurinista, habitante de Copacabana, não saiu de casa porque o bairro está tomado por hordas de delinquentes que atacam transeuntes à luz do dia.

Para Garotinho e Sérgio Cabral a culpa é da baixa das commodities, da crise internacional, da perseguição política ou do azar crônico do brasileiro.

O tratamento de choque do juiz Sérgio Moro liga os fios à cúpula do PMDB carioca. Um amigo foi almoçar no Esplanada Grill do Leblon e cruzou com cinco anônimos de tornozeleira traçando uma picanha nobre. Falta saber se a investigação atingirá os demais partidos e os figurões do Congresso.

O mundo rui, lá fora, e eu me agarro à biografia de Sigmund Freud, de Elisabeth Roudinesco.

A geração que viveu a primavera da "belle époque" de Viena foi atropelada pela ascensão de um nacionalismo raivoso, semelhante ao dos que invadiram o plenário pedindo a volta dos milicos. Esse nacionalismo deflagrou a Primeira Guerra Mundial e atingiu o clímax com o nazismo.

Tudo pode piorar.

"Não víamos os sinais ígneos", disse Stefan Zweig, que, fugido, acabaria por se suicidar no Brasil. "Nos refestelávamos, despreocupados, com todas as iguarias da arte, sem olhar com medo para o futuro. E só quando, mais tarde, as paredes desabaram sobre nós, reconhecemos que os alicerces, há muito, já estavam solapados."

Freud intuiu a pulsão de morte nesse período. No lugar de Édipo e Hamlet, Narciso. Um homem incapaz de frear o irresistível impulso de se autoaniquilar.

É o que ando sentindo. No planeta e aqui.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.