Economia

Especialistas discutem se apps de tradução podem reduzir interesse em aprender idiomas

Apenas o Google Tradutor tem cerca de 500 milhões de usuários por mês, sendo que 95% do tráfego é gerado fora dos EUA
Uma das ferramentas mais recentes realiza a tradução de peças escritas instantaneamente: basta direcionar a lente para a palavra desconhecida que o aplicativo mostra na tela o verbete traduzido Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
Uma das ferramentas mais recentes realiza a tradução de peças escritas instantaneamente: basta direcionar a lente para a palavra desconhecida que o aplicativo mostra na tela o verbete traduzido Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

RIO — Uma passagem do Antigo Testamento narra como os homens construíram uma cidade em forma de edifício que alcançaria os céus — a Torre de Babel. Como castigo pela tentativa de chegar à morada divina, e para que a humanidade se espalhasse pela Terra, Javé, o Deus hebraico, confundiu-lhes as línguas, impedindo os homens de se entenderem naquela construção. Mas o mito bíblico não poderia prever que, milênios depois, as barreiras entre os vários idiomas pudessem ser derrubadas com alguns cliques. Hoje, aplicativos e programas de tradução simultânea estão cada vez mais populares e diversificados. Enquanto artigos e debates sobre essa tecnologia levantam a hipótese de as ferramentas tornarem obsoleto o aprendizado de idiomas estrangeiros no futuro, professores de línguas e tradutores profissionais baixam a bola, uma vez que as novidades ainda não são 100% confiáveis.

Só o Google Tradutor tem cerca de 500 milhões de usuários por mês, sendo que 95% do tráfego é gerado fora dos EUA. Com ele, usuários de quaisquer plataformas (smartphones, desktops etc) podem ter, em poucos segundos, acesso a traduções de texto e voz em 90 idiomas. Este ano, a ferramenta passou a traduzir placas, instantaneamente, em 27 idiomas, utilizando-se da câmera do celular. Basta direcionar a lente para a palavra desconhecida que o aplicativo mostra na tela o verbete traduzido.

Já a Microsoft disponibilizou, em maio, um aplicativo que faz traduções em tempo real para todos os usuários do Skype, seu programa de conversas via web. Da sua casa, diante do computador, você pode conversar com pessoas de outros países sem falar a língua delas. A ferramenta já traduz em texto 50 idiomas, mas as opções para conversas de voz ainda são limitadas a inglês, espanhol, mandarim e italiano.

Essas e diversas outras ferramentas parecidas vêm levando muita gente a questionar se, no futuro, com o aprimoramento dessas funcionalidades, será preciso aprender um segundo idioma.

‘ELES FACILITAM BASTANTE A VIDA’

Em setembro de 2014, um jornalista do “Financial Times” publicou um artigo intitulado “Aprender outra linguagem? Não se importe com isso”. No site “Reddit”, é possível achar diferentes e movimentados fóruns de debate sobre o tema. Um deles começa com: “Será que eu ainda preciso aprender outro idioma?”. O tema é discutido mesmo em centros de ensino de línguas. Em fevereiro deste ano, um texto do “British Concil” pergunta: “O fim do aprendizado de linguagens?”. A estudante Deborah Maia, de 18 anos, adepta de tradutores digitais, reforça a dúvida.

— Eles facilitam bastante a vida. Meu pai se mudou este ano para a França, estive lá visitando e usei um dos apps no meu dia a dia, para pedir comida, por exemplo — afirma Deborah, que faz aulas de inglês. — Ainda é preciso ter cautela, porque a tradução nem sempre é correta, e também não quero me acomodar. Mas me pergunto se, no futuro, quando essa tecnologia estiver mais avançada, não vai realmente inibir as pessoas de aprenderem outros idiomas.

À direita, Deborah Maia Cruz Machado, de 18 anos, que estuda inglês há 10 anos, ao lado de Roberta Freitas, coordenadora acadêmica do curso IBEU Foto: Mônica Imbuzeiro / Agncia O Globo
À direita, Deborah Maia Cruz Machado, de 18 anos, que estuda inglês há 10 anos, ao lado de Roberta Freitas, coordenadora acadêmica do curso IBEU Foto: Mônica Imbuzeiro / Agncia O Globo

Coordenadora acadêmica do curso de idiomas Ibeu, Roberta Freitas percebe o impacto das novas tecnologias de tradução dentro e fora da sua profissão. Ela incentiva os alunos a utilizarem esses serviços como forma de reforçar e expandir o que aprendem na sala de aula. Mas acha que os aplicativos não ameaçam a importância do aprendizado.

— Sem dúvida, são ferramentas de auxílio válidas. Não permitimos o seu uso nas aulas, mas incentivamos que os alunos os utilizem na sua rotina, para dúvidas pontuais. Claro que eles não substituem o ensino formal de línguas, mas o complementam — diz Roberta, que também faz uso dos apps. — Estive no interior da França e fiquei hospedada na casa de uma família. Como não tenho muita prática com o francês, usei o tradutor do Google em situações pontuais. Na casa também tinha uma chinesa que não falava nada do idioma e que só conseguiu se virar graças ao serviço.

Mas, apesar de bastante práticas, essas ferramentas não são perfeitas, o que exige atenção. Algumas palavras não são traduzidas corretamente.

— O usuário precisa ter critério, já que as ferramentas estão longe da perfeição. Para coisas mais complexas, e, principalmente, uso profissional indiscriminado, eu não recomendo. Idiomas como o português, por exemplo, cheios de meandros e conjugações, ainda são de difícil tradução por máquinas — afirma a presidente da Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes (Abrates), Liane Lazoski.

VARIABILIDADE NA PRONÚNCIA COMPLICA

No caso de traduções orais, a possibilidade de erros é maior, conforme explica Raffaella Quental, membro da diretoria da Associação Profissional dos Intérpretes de Conferência (Apic):

— A tradução oral é um caso complicado. Há uma variabilidade na pronúncia entre as pessoas que pode ser difícil para a máquina captar. Além disso, há a questão da entonação, dos gestos, da expressão. As máquinas ainda não se equiparam ao verdadeiros intérpretes.

Vice-presidente de marketing da Moravia, empresa especializada na tradução de softwares, Renato Beninatto explica que os serviços mais populares de tradução automática atualmente funcionam a partir de duas abordagens:

— Primeiro veio a tradução baseada em regras, como análise sintática. Depois, tivemos a tradução automática, com base estatística, que analisa uma palavra, o seu número de ocorrências na rede e, então, seleciona a tradução mais adequada. Hoje, os serviços mesclam as duas tecnologias e avançam a partir daí. O interessante é que essas tecnologias agora são capazes de se autoaprimorar, além de serem úteis no dia a dia.

Mas Beninatto também não acredita no fim do ensino propriamente dito.

— O aprendizado de línguas não se dá só pela necessidade, mas por seu valor social: um profissional que sabe mais idiomas é mais valorizado.

Há anos a Microsoft pesquisa o desenvolvimento de sistemas de tradução. Seus esforços culminaram na criação do serviço Microsoft Translator, uma plataforma aberta, e na implementação do recurso de tradução simultânea de fala no programa Skype.

— As tecnologias de tradução trazem possibilidades infinitas para as pessoas ao redor do mundo se comunicarem, colaborarem entre si, se educarem e se tornarem mais produtivas. Com elas, as pessoas não se sentem mais limitadas por questões geográficas e de idioma — afirma Vikram Dendi, diretor senior do Microsoft Research.

TRADUTORES DEVEM VER APPS COMO ALIADOS, DIZEM ESPECIALISTAS

Entre os profissionais de idiomas, enquanto alguns olham torto para as novas possibilidades oferecidas pelas tecnologias de tradução, outros dizem ver nesses serviços ferramentas auxiliares às suas atividades. No entanto, uma percepção parece ser consenso na área: a tecnologia ainda está longe de substituir plenamente o trabalho de seres humanos em fazer falantes de línguas diferentes se entenderem — se é que chegará a isso algum dia.

Presidente da Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes (Abrates), Liane Lazoski diz reconhecer os aplicativos de tradução como aliados à sua profissão, e não como inimigos.

— É claro que esses aplicativos não são perfeitos, mas eu estaria mentindo se dissesse que eles não agilizam o nosso trabalho. Nenhum profissional que se preze vai pegar um texto, jogar na tradução automática e pronto. Mas, dependendo do caso, essa primeira etapa pode fazer você ganhar tempo, já que o trabalho de tradução é feito em etapas. O bom profissional vai utilizar os serviços ao seu favor, e não para substituir o seu trabalho — afirma ela.

No entanto, a tradutora reconhece que, com a popularização de serviços como o Google Tradutor, o mercado se viu invadido por amadores:

— Devido à tecnologia, muita gente agora acha que tradução é algo que qualquer um pode fazer, mas não é verdade. Infelizmente, alguns clientes acabam recorrendo a esses profissionais mais baratos, manchando a reputação da categoria.

Professor de tecnologias e técnicas de tradução na PUC-Rio, Ricardo Souza reconhece que ainda há muito preconceito entre profissionais da sua área com as novas ferramentas digitais. No entanto, ele é enfático: o bom profissional tem que estudar, se informar e se transformar a partir das novidades.

— Muitos tradutores ainda se apoiam na ignorância e no medo de que a tecnologia vai tomar o seu trabalho e a rejeitam. No entanto, quem se dispõe a estudar sobre isso se espanta como esses serviços podem ajudar o nosso trabalho. Cabe ao bom profissional acompanhar as mudanças e evoluir com elas — diz.

LÍNGUA VIVA, OBSTÁCULO PARA MÁQUINAS

A percepção é semelhante à de Renato Beninatto, vice-presidente de marketing da companhia de tradução de softwares Moravia:

— Vemos muito essa divisão na tradução: tem quem odeie a tecnologia, porque acha que ela está tirando o seu trabalho; quem usa as ferramentas, mas não colabora para o seu aprimoramento; e quem as vê como um instrumento de produtividade para o tradutor profissional. A verdade é que essas tecnologias ainda têm muito a evoluir antes de se igualarem aos profissionais, e isso é algo que não acontecerá tão cedo.

Para Liane Lazoski, o principal obstáculo para a evolução das máquinas no trabalho de tradução é a natureza dinâmica dos idiomas.

— A língua é viva, novos termos surgem o tempo todo, outros caem em desuso. Há sutilezas na linguagem escrita e oral de diversos idiomas que só outras pessoas são capazes de compreender, não importa o quanto a tecnologia evolua — afirma.