25 DE NOVEMBRO
por César Príncipe
O golpe iniciou-se em Novembro, dia 25. Prolongou-se pela
madrugada de 26. Corria o Ano da Desgraça de 1967. Oliveira Salazar presidia ao
Governo. Américo Tomás presidia à República. Santos Júnior era ministro do
Interior. Deus, ao que se presumia e alardeava, tinha Portugal sob custódia há
oito séculos. Fátima acabava de ser visitada, no 13 de Maio, pelo papa Paulo VI
que (pelo sim, pelo não) evitou escalar Lisboa. Temeu maus encontros. Diz-se
que não quis comprometer-se com o regime do Império e de Deus, Pátria, Família. E certamente teria os seus presságios quanto
a trombas humanas e pluviométricas. No tocante ao resto, ao que se
propagandeava, imperava a Ordem e a Tranquilidade. Vivíamos em paz. De facto, só estávamos em guerra policial contra a
população civil desde 1926. Na realidade, só estávamos em guerra militar contra
os movimentos armados de libertação desde 1961.
Os acontecimentos do 25 de Novembro levaram o estado de
calamidade a parte da capital e da região envolvente. Tudo começou com medonhos
trovões, fortes rajadas, chuvas diluvianas. Os céus desabaram. As águas
ocuparam ruas e casas, berços e campas. O saldo foi pavoroso. As autoridades
reconheceram a custo e a conta-gotas a existência de 462 mortos. No entanto, as
estatísticas revelar-se-iam mais pesadas. A história regista outros números:
cerca de 700 vítimas mortais e mais de 1000 desalojados. A Censura afadigava-se
para manter a verdade nos varais. Emanava ordens patéticas e categóricas para
os órgãos de comunicação. Por exemplo, para a Rádio Clube Português: A partir de agora não morreu mais ninguém.
Por exemplo, para o Jornal de Notícias: Urnas
e coisas semelhantes: não adianta nada e é chocante. Não falar do mau cheiro
dos cadáveres (nem) das actividades
beneméritas dos estudantes. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os
títulos mais pequenos. Somente o clandestino Avante! (Dezembro de 1967) não
acatava directivas da Censura: As
inundações não teriam originado semelhante tragédia se o governo se tivesse
preocupado em resolver da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado
da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse
tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham (...) porque não foram destruídos pelas chuvas
diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros de Urmeira,
Olival Basto, Pombais...Quinta do Silvade, Odivelas (…) os bairros arrasados encontravam-se em zonas
baixas, circundadas de colinas, facilmente inundáveis, construídos de tábuas e
lata (…) desde há muito que se clama
contra o assoreamento dos rios, contra a falta de diques. Desde há muito que se
protesta contra os fenómenos de erosão…Nem a mais pequena verba para a
regularização das águas do Tejo (…)
E afinal qual a justificação final e oficial para a
catástrofe? Ei-la (e não pasmem!), pois continua revista e actualizada: nada tinha a ver com condições sociais,
urbanizações precárias ou ilegais, assoreamentos, ribeiras encanadas,
colectores bloqueados, deficiências de socorro. Insignes figuras políticas e
religiosas remeteram as responsabilidades para a esfera divina. E sabe-se: a cólera dos deuses é milenar. De resto,
na linha do jesuíta Gabriel Malagrida que debitou o terramoto de 1 de Novembro
de 1755 na conta-corrente dos pecados do marquês de Pombal e dos seus sequazes.
Ao fim e ao cabo, também na linha de Calvão da Silva, ministro da Administração
Interna, sucessor de Santos Júnior, que a respeito das inundações da Albufeira
(2015) logo detectou a mão das forças
demoníacas, aceitando como item da teologia pragmática a insensibilidade do
Criador: Deus nem sempre é amigo. No
afã desculpacionista, apenas cometeu um deslize de angariador de apólices:
aconselhou os portugueses a confiar mais nas Companhias de Seguros do que no
Omnipotente e Misericordioso. Demonstrou, contudo - vá lá - visionária
compaixão ao referir-me ao morto de Boliqueime: Entregou-se a Deus. No fundo, CS, apesar de tantas sanhas e
indiferenças das potestades, andou com sorte: apenas foi rejeitado, com o
demais lote governamental, pela Assembleia da República. E idêntico e benévolo
despacho mereceu SJ, o ministro das cheias de 1967, o ministro da brutal
repressão das manifestações estudantis e operárias de 1962, o ministro da PIDE
(1961-1969), a que assassinou o general Humberto Delgado, obviamente com a sua
chancela, em 1965. SJ foi dispensado pelo marcelismo. Sinais dos tempos: evolução na continuidade. O Júnior deu
lugar ao Rapazote. Pior destino teve Malagrida, alvo de auto-de-fé: (…) que com baraço e pregão seja levado pelas
ruas públicas desta cidade à Praça do Rossio e que nela morra morte natural de
garrote, e que depois de morto seja seu corpo queimado e reduzido a pó e cinza,
para que dele e sua sepultura não haja memória alguma.
Novembro, 25.
Data funesta.
«Somente o clandestino Avante! (Dezembro de 1967) não acatava directivas da Censura: As inundações não teriam originado semelhante tragédia se o governo se tivesse preocupado em resolver da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham (...) porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros de Urmeira, Olival Basto, Pombais...Quinta do Silvade, Odivelas (…) os bairros arrasados encontravam-se em zonas baixas, circundadas de colinas, facilmente inundáveis, construídos de tábuas e lata (…) desde há muito que se clama contra o assoreamento dos rios, contra a falta de diques. Desde há muito que se protesta contra os fenómenos de erosão…Nem a mais pequena verba para a regularização das águas do Tejo (…)»
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